quarta-feira, 18 de maio de 2011

NÃO ENUMERO OS MEUS MORTOS


Não enumero os meus mortos
Sinto-os com ternura
Distantes de lápides
Distantes de vermes
Não penso em seus corpos
cortados em fatias
cobertos de bolor
Não choro os seus olhos
inexistentes e tensos
Nao procuro suas mãos
buquê de ossos mal arrumado
Não vinculo suas almas
seus sorrisos
à tenra poeira fosca
a lábios cavernosos
Não visito aos domingos
com flores entre os dedos
Nem recito orações
diante de seus carcomidos epitáfios
Choro-os de quando em quando
em dias de Ano Novo
Natal
e às vezes
 em rápidos momentos
no olhar para as coisas mais vivas
São etéreos
não putrefatos
São nuvens claras
não jazigos
São amigos
que em afastadas regiões
vivem a vida nossa
Livres
Leves
Longe
Despidos do inconfortável peso
da matéria

(1974- Poema publicado em DESCOMPASSO)



quarta-feira, 13 de abril de 2011

LEGADO


Não temo a morte
      causa
      consequência
de uma parca estória
Não temo a morte

Temo o intenso
Não o ir
mas o que deixar
que maior solitário
é aquele
sem herdeiros
(legais)
para quem deixar
seus objetos
seus sonhos
dejetos de vida
Temo a solidão

Hoje
não sei o que legar
nem a quem
no entanto
cuspo meu testamento

O corpo
entrego à literatura
para ser dissecado
sugado
esgotado
até não passar
de anacoluots
metáforas
prosopopéias
elipses
elipses

Os olhos
ao fogo
Estou farta
de ver este mundo
com horizontes verticais

As mãos
à terra
adubando sementes
e criando flores
e criando frutos

A angústia
deixo em caixa dourada
de museu
para apodrecer
entre pérolas

Os medos
dôo-os aos fortes
                  grandes
                  poderosos

A garra
aos amantes

A gana
aos falsos

O novo sorriso
aos velhos naftalina

O sorriso
(antigo)
pra quem quiser
arrsicar

A vontade de ter
aos homens de fato

A vontade de ser
aos homens de direito

Um pensamento terno
aos amigos

Uma pergunta às crianças

Uma cantiga de amigo
pra um
meu mais querido

Uma cantiga de amor
e um beijo
pra ele
meu único

Um aperto de mão
em quem gostou
de mim

Um abraço pros outros

E se ainda houver tempo
para meus inexistentes
dois nomes
Renata e Pedro

Nada mais

(Poema publicado em DESCOMPASSO, 1976)

RETRATO FALADO

Nada mais sou que madeira
         turva
         tosca
         torta
         tensa
Um pedaço de madeira animal
Molhada de sangue bruto
Coberta de casca grossa
Presa por raízes curtas

Nada mais sou que madeira
         crua
Marcada de cicatrizes
de canivetes
machados
Vestida de corações
setas
pequenos recados
Vestida de coisas comuns

Nada mais sou que madeira
          velha
E em meus braços longos
horizontais
vão se pondo
recordações
recortes de jornais

De minha raíz
         pouca
Sou testemunha ocular
da morte inesperada
do sofrimento
da gana
da vontade estúpida
de gritar
Sou cúmplice
da dor
e do tédio
Não havendo remédio
para conter o chorar

Me curvo
         vencida
Me deixo ficar
À distância
Bem longe de tudo
Até que todas as folhas caiam
E não reste mais nada a esperar

(Poema publicado em DESCOMPASSO, 1975)

terça-feira, 12 de abril de 2011

ESTÓRIA DE BRUXAS

Hoje diria o verso exato
no momento exato
com a palavra exata
que ficou perdido
               esquecido
na garganta

Hoje contaria estórias de fadas
de gênios
de moços emoldurados na armadura prata
Hoje contaria estórias de gente
e falaria de amor
invertendo o não
contaria estórias de mim
e marcaria com a precisão
de cada gesto
de cada ato
o manifesto fato
de um largo
          monumental sorrir

Hoje respiraria o que há de azul
neste resto de outono
                        o que há de rosa
neste inicio de tarde
                        o que há de branco
nesta nesga de mar

Sorriria hoje
Amaria hoje
Retificaria verdades esquecidas
Ratificaria mentiras infantis
Seria criança hoje

Mas implodo seca
No gesto maduro
Na gargalhada muda
Na rima pobre
Noinexato verso
sem momento e sem palavras
como nas estórias de bruxas

(Poema publicado em DESCOMPASSO, 1978)

NÃO SE CHORA

Não se chora
duas vezes
num só dia
se reclama
se amofina
se massacra
se alucina
mas chorar
não
nunca
duas vezes ao dia

A gente amordaça
o amargo da boca
do coração
e finge
deliberadamente
que o nó vasto
na garganta
é laço frouxo
de festa
mas chorar
não
nunca
duas vezes ao dia

Nem por amor
ou saudade
nem por medo
ou piedade
duas vezes
não

é demais
é intenso
é tolice
sem razão

Chorar
por si só
é nefasto
ridículo

Não se chora
duas  vezes
nem por raiva
nem por manha
nem por morte
nem por ele

(Poema publicado em DESCOMPASSO, 1977)

***

Não quero chorar pelo que não fiz
nem pelas feridas que não sulquei

       Quero sair no domingo
        tomar um porre
        ver gente
        falar de amor
        dizer e redizer bobagens
        ir à praia
        e rever imagens
        de nem sei quem

Não quero vestir a roupa da moda
nem despir os que não têm

        Quero fazer poesia
         esquecer teorias
         mentir
         sorrir
         contar os meus casos
        a todos que neles crêem

Não quero lutar por nada
nem por ninguém

       Quero fazer besteiras
        escorregarno vento
        molhar meus olhos
        neste mar imenso
        mexer com os outros
        cuspir no chão
        e cair na asneira
        de dizer não

Não quero viver de gestos
nem de restos também

       Quero querer mais fundo
       acreditar em tudo
       amolecer o escudo
       que a todos cobre
       e bem

Não quero ser mais um
nem todos

         Quero perder no jogo
         ganhar coragem
         e dizer pro mundo
         que me apaixonei

(Poema publicado em DESCOMPASSO, 1975)

REUNIÃO

angústia
cansaço
desespero
não sei
só sei que tudo
naquele algo
mudou
os sorrisos frouxos
os olhares vagos
a inapetência
o descompassado
parabéns
(às pressas)
e até mesmo
a gritaria
da gente pequena
tudo mudou

agora
a familia é espelho
rachado
a refletir
tontos sonhos
esperanças
recordações

..........................................

a casa e as velas
    as mesmas
      o bolo
        igual

mas hoje
falta um aquilo
um aquilo só nosso
que se perdeu por aí
pelos anos
e no burburinho
da fasta
no tilintar
de línguas
e talheres
o silêncio é presente
marcante
e cruelmente
impossivel
de se apagar

(Poema publicado em DESCOMPASSO, 1976)

segunda-feira, 11 de abril de 2011

CENA EM FAMILIA

O pai chega
O filho sai
e o Divino Espirito Santo serve o jantar
com um sorriso forçado nos olhos

(Poema publicado em DESCOMPASSO,1974)

GEOMETRIA

Sou tão
           só
quanto
           hipotenusa
           oblíqua
           enorme
cercada de catetos por todos os lados

(Poema em DESCOMPASSO,1977)

VÉSPERA


Faz um ano
se é que faz
desfaz-se um sonho
desmarca o tempo
Faz um ano
 se é que faz

A espera na amarra
o grito
o riso solto
o criar com as mãos
e com os pés
e com os olhos
           a fala
           o gesto
o criar criando
o criar criança
no se espalhar
de um ano
no gargalhar de um tempo
A esperança na amarra

Faz um ano
se é que faz
O corre-corre
o volta sempre
a falta do carro
a farsa no palco
e riso
e ânsia
e esse sufuco imenso
preso sempre e sempre
e sempre na garganta

Os amigos dispersos
diversos
numa só mão
no empurrar da aflição

Passa folha
          risco
          letra
inverte
investe

A festa na sala de estar
no palco
na mente
no corpo
A vida voava num dia
passava o momento
             o minuto
             o segundo
ninguém via

Faz um ano
se é que faz
a esperança feita de farra
um ano
se é faz

O gesto agora é pequeno
O mundo agora é pequeno
A vida agora é
não sei
A esperança é feita de farra
se é que se faz

(Poema publicado em DESCOMPASSO, relembrando a preparação do livro CORAÇÕES TROPICAIS)

MEU POEMA

Ñão é poema de amor
ou de tédio
nem mesmo poema de dor
é muito mais poema remédio
fragmento de cor
Sem pé nem cabeça
de braços atados
poema menino
um nada de estória
coitado
Não é feito de rimas ou gestos
fatos ou coisas
é um poema modesto
Uma estranha recordação
Um descuido do olhar
Um momento
ou talvez
simplesmente
um resto de expiração.

(Poema publicado em DESCOMPASSO, 1976)

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

ENGRENAGEM


No rumo
Na rima
No ranço
Traço o poema troça
Tranco o riso
Trinco o lábio
Lacro o amargo
          a saudade

No rumo de cada estória
faço a trama da razão
Risco
Rasgo
Canso
faço o drama
       o cantochão

Na rima de cada canto
canto mais alto que posso
Grito
Torço
Vingo
Mando
Em resposta o contracanto
                    o contratempo
                    a contramão

No ranço de esperança vaga
Limo o susto
Lixo o medo
Solto o verbo
Seco no peito a palavra
Murcho o que há de extremo
Marco o que não foi falado
E em resposta o degredo
o troco um desagrado
o pranto como desculpa
a vida como culpada

(31/8/78- Eu tinha acabado de fazer 21 anos.E ainda eram anos de chumbo.)

(Poema publicado em DESCOMPASSO, ed. Cátedra, 1979)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

SEGUNDA-FEIRA





Segunda-feira
dia da graça
dia de graça
dia desgraça

Segunda-feira
(que nem feira tem)

Foge
num pulo
o domingo
o riso
o cheiro de mar
e mormaço

Segunda-feira
cheiro de aço
e fumaça
e cansaço

Segunda-feira
(que nem feira tem)

Tem só trabalho
sem canto
com ponto
sem tempo
com hora marcada
pra nada

Segunda-feira
(que nem feira tem)

Dia da graça
dia de graça
dia desgraça
segunda-feira
molenga

Despe teu sono moleque
o dia chegou

Dia da farsa
comparsa
da dor
do cansaço
do medo

Segunda-feira
(que nem feira tem)

Despe teu riso menino
o dia chegou
de manso
de chofre
na base do empurra

Deixa de lado
toda a festa
o batuque
a seresta
despe teu cheiro malandro
de chopp gelado
o dia chegou

Segunda-feira
(que nem feira tem)

Tem
só a fome
sem pauta
com sede
sem falta
com hora marcada
pra se esconder

Segunda-feira
(que nem feira tem)

Despe teu nome Seu moço
põe tua senha no bolso
e corre
é amanhecer

(1977- Eu tinha 20 anos e começava a trabalhar!!!!!)

(Poema publicado em DESCOMPASSO, Ed. Cátedra, 1979)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

E DEUS CRIOU O HOMEM E A MULHER



















Um dia
não faz muito tempo
quando tudo a volta era solidão
Deus
(como quem não quer nada)
redigiu o homem
e
a mulher
num pedaço de folha
pautada

O homem foi descrito
em decassílabos sáficos e heróicos
e a mulher em versos brancos

E entre metáforas e antíteses
começaram a surgir
(como se saíssem do barro!)
duas figuras iguais e distintas
que sem compromisso se amavam

Eram dois poemas
sozinhos
perdidos e desconcertados
entre as estantes vazias
de uma biblioteca
antiquada

E por não serem folheados
por ninguém
folhearam um ao outro
e por não serem consumidos
por ninguém
consumiram um ao outro

Se interpretaram
por muito tempo
(meio tímidos)
(meio tontos)
decoraram trechos
leram em voz alta
parágrafos inteiros

Foram se resumindo
se interligando
de tal forma
que deixaram de ser dois
e viraram um só
soneto

(1975 - Aos 17 anos, o amor pode ser azul!)


(Poema publicado em DESCOMPASSO, ed. Cátedra,1979)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

ORÁCULO



















Somos os dos últimos tempos
os ricos de crediário
os puros de Cursilho
os filhos de mães solteiras
Somos os dos últimos dias
os que contestam o burguês
e vivem na procura de status
os que enumeram teorias
e se engasgam com a prática
os que amam livremente
e vasculham o útero verde
na sondagem mortal
Somos os da última década
os sem dia seguinte
os de futuro incerto
os da classe média
os vermes falsos das tardes
os amedrontados
os covardes
os contraguerra
lutadores sem pátria
Somos os dos últimos anos
os ateus que casam de branco
os sonhadores artifciais
os seres da Lua
os máquina de Marte
os mortos de fome da terra
os poetas
os filósofos
os assassinos
os parasitas
Somos os dos últimos momentos
os de sangue quente
os de voz grossa
os de mãos fortes
os impotentes
os filhos de pais penúltimos
os pais de filhos inúteis
Somos os das últimas horas
os agentes poluidores
os pacientes poluídos
os comandantes
os camandados
os engarrafados no tráfico
os bêbados de fim de jogo
os troncos secos da fornalha atômica
os pobres homens honestos
os ricos homens espertos
Somos os dos últimos segundos
os segurados
os neróticos
os atrasados
os necrosados
os vítimas dos vigésimos andares
os torcedores tarados
os jovens traumatizados
os desprezados
os que podiam ser
os castos
os machos
os piegas
os vitoriosos inválidos
Somos os do último século
os de nervos tensos
os de futuro negro
os de frutos podres
os de terras secas
Somos os da última fase
a mórbida
a vingativa
a solitária
a assassina
     fase vital dos falsos homens sem vida


(1974 - Eu tinha 16 anos e um longo caminho ainda a percorrer.)

Poema publicado em DESCOMPASSO, Ed. Cátedra, 1979