quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

ORÁCULO



















Somos os dos últimos tempos
os ricos de crediário
os puros de Cursilho
os filhos de mães solteiras
Somos os dos últimos dias
os que contestam o burguês
e vivem na procura de status
os que enumeram teorias
e se engasgam com a prática
os que amam livremente
e vasculham o útero verde
na sondagem mortal
Somos os da última década
os sem dia seguinte
os de futuro incerto
os da classe média
os vermes falsos das tardes
os amedrontados
os covardes
os contraguerra
lutadores sem pátria
Somos os dos últimos anos
os ateus que casam de branco
os sonhadores artifciais
os seres da Lua
os máquina de Marte
os mortos de fome da terra
os poetas
os filósofos
os assassinos
os parasitas
Somos os dos últimos momentos
os de sangue quente
os de voz grossa
os de mãos fortes
os impotentes
os filhos de pais penúltimos
os pais de filhos inúteis
Somos os das últimas horas
os agentes poluidores
os pacientes poluídos
os comandantes
os camandados
os engarrafados no tráfico
os bêbados de fim de jogo
os troncos secos da fornalha atômica
os pobres homens honestos
os ricos homens espertos
Somos os dos últimos segundos
os segurados
os neróticos
os atrasados
os necrosados
os vítimas dos vigésimos andares
os torcedores tarados
os jovens traumatizados
os desprezados
os que podiam ser
os castos
os machos
os piegas
os vitoriosos inválidos
Somos os do último século
os de nervos tensos
os de futuro negro
os de frutos podres
os de terras secas
Somos os da última fase
a mórbida
a vingativa
a solitária
a assassina
     fase vital dos falsos homens sem vida


(1974 - Eu tinha 16 anos e um longo caminho ainda a percorrer.)

Poema publicado em DESCOMPASSO, Ed. Cátedra, 1979

Um comentário:

  1. Vasculhando na internet na busca de três versos que me vieram a cabeça (os que amam livremente / e vasculham o útero verde / na sondagem mortal)e descubro o blog; 33 anos se passaram e o Oráculo continua sendo um dos poemas mais bonitos que li.

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