quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

ENGRENAGEM


No rumo
Na rima
No ranço
Traço o poema troça
Tranco o riso
Trinco o lábio
Lacro o amargo
          a saudade

No rumo de cada estória
faço a trama da razão
Risco
Rasgo
Canso
faço o drama
       o cantochão

Na rima de cada canto
canto mais alto que posso
Grito
Torço
Vingo
Mando
Em resposta o contracanto
                    o contratempo
                    a contramão

No ranço de esperança vaga
Limo o susto
Lixo o medo
Solto o verbo
Seco no peito a palavra
Murcho o que há de extremo
Marco o que não foi falado
E em resposta o degredo
o troco um desagrado
o pranto como desculpa
a vida como culpada

(31/8/78- Eu tinha acabado de fazer 21 anos.E ainda eram anos de chumbo.)

(Poema publicado em DESCOMPASSO, ed. Cátedra, 1979)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

SEGUNDA-FEIRA





Segunda-feira
dia da graça
dia de graça
dia desgraça

Segunda-feira
(que nem feira tem)

Foge
num pulo
o domingo
o riso
o cheiro de mar
e mormaço

Segunda-feira
cheiro de aço
e fumaça
e cansaço

Segunda-feira
(que nem feira tem)

Tem só trabalho
sem canto
com ponto
sem tempo
com hora marcada
pra nada

Segunda-feira
(que nem feira tem)

Dia da graça
dia de graça
dia desgraça
segunda-feira
molenga

Despe teu sono moleque
o dia chegou

Dia da farsa
comparsa
da dor
do cansaço
do medo

Segunda-feira
(que nem feira tem)

Despe teu riso menino
o dia chegou
de manso
de chofre
na base do empurra

Deixa de lado
toda a festa
o batuque
a seresta
despe teu cheiro malandro
de chopp gelado
o dia chegou

Segunda-feira
(que nem feira tem)

Tem
só a fome
sem pauta
com sede
sem falta
com hora marcada
pra se esconder

Segunda-feira
(que nem feira tem)

Despe teu nome Seu moço
põe tua senha no bolso
e corre
é amanhecer

(1977- Eu tinha 20 anos e começava a trabalhar!!!!!)

(Poema publicado em DESCOMPASSO, Ed. Cátedra, 1979)

domingo, 6 de fevereiro de 2011

E DEUS CRIOU O HOMEM E A MULHER



















Um dia
não faz muito tempo
quando tudo a volta era solidão
Deus
(como quem não quer nada)
redigiu o homem
e
a mulher
num pedaço de folha
pautada

O homem foi descrito
em decassílabos sáficos e heróicos
e a mulher em versos brancos

E entre metáforas e antíteses
começaram a surgir
(como se saíssem do barro!)
duas figuras iguais e distintas
que sem compromisso se amavam

Eram dois poemas
sozinhos
perdidos e desconcertados
entre as estantes vazias
de uma biblioteca
antiquada

E por não serem folheados
por ninguém
folhearam um ao outro
e por não serem consumidos
por ninguém
consumiram um ao outro

Se interpretaram
por muito tempo
(meio tímidos)
(meio tontos)
decoraram trechos
leram em voz alta
parágrafos inteiros

Foram se resumindo
se interligando
de tal forma
que deixaram de ser dois
e viraram um só
soneto

(1975 - Aos 17 anos, o amor pode ser azul!)


(Poema publicado em DESCOMPASSO, ed. Cátedra,1979)

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

ORÁCULO



















Somos os dos últimos tempos
os ricos de crediário
os puros de Cursilho
os filhos de mães solteiras
Somos os dos últimos dias
os que contestam o burguês
e vivem na procura de status
os que enumeram teorias
e se engasgam com a prática
os que amam livremente
e vasculham o útero verde
na sondagem mortal
Somos os da última década
os sem dia seguinte
os de futuro incerto
os da classe média
os vermes falsos das tardes
os amedrontados
os covardes
os contraguerra
lutadores sem pátria
Somos os dos últimos anos
os ateus que casam de branco
os sonhadores artifciais
os seres da Lua
os máquina de Marte
os mortos de fome da terra
os poetas
os filósofos
os assassinos
os parasitas
Somos os dos últimos momentos
os de sangue quente
os de voz grossa
os de mãos fortes
os impotentes
os filhos de pais penúltimos
os pais de filhos inúteis
Somos os das últimas horas
os agentes poluidores
os pacientes poluídos
os comandantes
os camandados
os engarrafados no tráfico
os bêbados de fim de jogo
os troncos secos da fornalha atômica
os pobres homens honestos
os ricos homens espertos
Somos os dos últimos segundos
os segurados
os neróticos
os atrasados
os necrosados
os vítimas dos vigésimos andares
os torcedores tarados
os jovens traumatizados
os desprezados
os que podiam ser
os castos
os machos
os piegas
os vitoriosos inválidos
Somos os do último século
os de nervos tensos
os de futuro negro
os de frutos podres
os de terras secas
Somos os da última fase
a mórbida
a vingativa
a solitária
a assassina
     fase vital dos falsos homens sem vida


(1974 - Eu tinha 16 anos e um longo caminho ainda a percorrer.)

Poema publicado em DESCOMPASSO, Ed. Cátedra, 1979